A noite iniciava seu abraço ao mundo, consumindo a luz que há pouco havia sido dia e havia deixado de herança um calor noturno repleto de vida, na forma de inúmeros insetos.
A chuva já se prenunciava, mas não de imediato. Possivelmente chegaria quando a pequena e carinhosa lua crescente, ainda em seu tênue aspecto, praticamente invisível por detrás das nuvens, tocasse o horizonte a oeste, deitando-se, ali próxima da meia-noite.
O vento era forte e vinha doce com o petricor ainda sutil. Carregava consigo as folhas das árvores e dominava aquele pequeno universo externo como um rei invisível, o cardeal oculto de uma catedral vermelha. Cães latiam para vultos disformes que surgiam apenas entre sombras de lâmpadas amareladas quando ninguém olhava.
Um pequeno redemoinho se formou próximo à parede que dava para uma saída de emergência e deu uma risada cheia de malícia e de intenções maldosas. Um de seus companheiros saiu das sombras e olhou feio para ele, fez um quase indiscreto “shhh”, para que ficasse quieto e retornou para seu esconderijo. O redemoinho deu uma grunhida, levantou terra, folhas, papel, lixo e tudo mais para o alto e se acalmou.
Eles esperaram calmamente do lado de fora da loja, enquanto ainda havia movimento. Era segunda-feira, então não demorou tanto para as pessoas saírem do lugar e fecharem tudo.
Depois de alguns minutos a risada veio novamente, mais estridente e mais velhaca. O rapaz de chapéu vermelho pulou, com sua única perna, em direção à porta de saída, que tinha uma enorme placa em inglês e português dizendo “EXIT/SAÍDA”. Coisa de gente estranha, “Quem eles acham que vem aqui? Diplomatas europeus?”, pensou o rapaz.
– Para de gastar tempo e abre logo a porta! – falou a pequena menina, com não mais de um metro de altura e com os pés virados para trás. – Daqui a pouco os outros chegam e devemos preparar tudo.
– Eu sei. Eu sei! Abrir esta porta é fácil, quero é ver você e aquela ali trabalharem nas câmeras. – O rapaz com o chapéu vermelho fala com a menorzinha. Então ele se foca em seu objetivo, conversa com a porta e a abre.
Agora era a vez da pequena curupira e da caipora. Viraram sombra e foram até as câmeras. Dois, três, quatro minutos e estavam resolvidas. O Saci bocudo não sabia o que falava, sempre menosprezando o trabalho delas.
Os três agora podiam ficar à vontade na loja. Já arrumaram a mesa, separaram as cadeiras, pegaram as caixas e esperaram. A chuva caiu, como o vento havia dito, e o mundo mudou.
As velhas e os dá água chegaram logo: Matinta, Cuca, Iara e Boto. Levaram suas comidas e também alimento para os pequenos. Não direi aqui o que havia dentro dos sacos, para não espantar ou assustar demais, mas certamente Cascudo sabia.
Era 31 de outubro e eles se sentaram ao redor da mesa e jogaram Triora, Zombicide, Last Day on Earth, Arkham Horror, Vale dos Monstros, entre outros. Eles eram diferentes dos clientes habituais da loja e o tempo parecia correr diferente com eles por perto, ainda mais na noite das bruxas, no dia das lendas.
No dia seguinte, quando chegaram para abrir a loja, os donos tomaram um susto. Pensaram que haviam sido roubados, mas perceberam logo que haviam sido vítimas de uma brincadeira de crianças levadas. Todas as caixas de jogo tinham sido trocadas de lugar, as comidas estragaram e azedaram, vários refrigerantes abertos e não tomados.
Com exceção do prejuízo com a comida, nada parecia realmente ter sumido ou estar faltando. Olharam as câmeras de segurança e não viram nada de anormal, apenas um pequeno redemoinho levantando papéis e então algumas sombras que se moveram repentinamente. Certamente passou um carro do lado de fora na hora.
Depois daquela noite, os donos da loja de jogos reforçaram as trancas e o mais velho sempre colocava um pacote de biscoito ao lado da porta dos fundos. No ano seguinte, esperava que as caixas estivessem bagunçadas, mas que ao menos as comidas e refrigerantes não estragassem.
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